23 maio 2007

Tristão e Isolda no Reino de Abdera

(“Homem e Mulher Ele os Criou”, Óleo sobre tela de Luiz Tumminelli)

Uma nova Crónica de Gil Gonçalves, a partir de Luanda, nas CRÓNICAS DO REINO DE ABDERA, ALGURES NO GOLFO DA GUINÉ

TRISTÃO E ISOLDA

Não são as Leis da Gravitação Universal. É a atracção universal de dois corpos humanos.
Que insituáveis, permanecem nas cadeias dos regimes totalitários. As cadeias dos queridos guias imortais, que iluminam os caminhos da fome.
Não há condicionantes. Há séculos que as condições continuam aprazíveis… só para aventureiros.
Tristão e Isolda enamoraram-se, namoravam-se. Não como aqueles que namoram e fazem disso uma mera ocupação para passar o tempo. Amavam-se para além das montanhas das suas almas. Muito para além da atracção universal de dois corpos terrenos. Os seus corações eram anormais. Estavam possuídos pela alta voltagem de Tesla, que lhes provocava curto-circuitos, lindos como os amores. Não notaram que construíram uma nave divina, e nela embarcaram para um universo paralelo só deles desconhecido. Tristão de vinte e um anos e Isolda dezasseis. Vizinhavam-se, há dois anos que floresciam no namoro. O pai dela não sabia, saber não podia. Estudavam, o futuro preparavam. Estudantes iguais a quaisquer outros. O Tristão vivia com um tio que o apoiava, como um mar de rosas imenso.
Distraíram-se e Isolda engravidou. Coisa mais natural nos que se amam. Aquele que dá ao outro, o que recebe o sémen consagrado, que depois aparece como um prémio perene de vida. Ou um bonito ou uma bonita, sempre à espera dos ternos e eternos olhares fecundos de carinho, que o espreitam antes e depois do nascimento.
Desabrochavam-se no seu amor que já tinha maturidade. A responsabilidade que aceitavam, a qual era sua fiel companheira. Tristão lembrou-lhe:
- Querida, acho que é melhor desfazeres a gravidez.
- Sim… também já pensei nisso meu amor.
- Sabes… alguns remédios que vendem por aí… acho que são eficientes.
- Já estou a tomar vários… com a ajuda das minhas amigas. Tudo correrá bem. Assim o espero!..
- Concordo contigo. Estudamos, e neste momento não temos condições para suportar um ser que nascerá, e para o qual não temos meios de o sustentar, alimentar. Será mais um esfomeado. Quem nos apoiará? Decerto serás escorraçada de casa. Para onde? E eu? Que estou na casa de um tio?!.. Deixaremos de estudar. Será o nosso fim… se o reino agendasse uma agenda de consenso nacional… um programa de apoio a jovens como nós, isso seria óptimo, como isso não existe, nunca existirá... até um nobre da universidade real quase a destruiu por causa de uma amante. Não concebo que o nosso ensino possa ser um passatempo enganador.
- Tristãozinho… compreendo perfeitamente. As tuas preocupações são a eternidade do nosso amor. Apesar de retirar a semente do meu ventre, que jurei só a ti pertencer, estará sempre livre para nele de novo semeares. Planta neste jardim acolhedor, a semente do nosso universo. Verás depois os frutos saborosos, acolhedores que cairão no paraíso das tuas mãos.
E a vida na barriga da Isolda mexia-se, sentia-se como o peixe na água, crescia, remexia, renascia. Preocupada, mas muito romantizada, como se dos seus lábios nascessem torrentes de jasmins, e o perfume incinerasse o seu amado num lago de lágrimas de amores-perfeitos.
- Tristimania, beneditino, bendito, bento amor, não me sinto bem. Acho que estou com paludismo.
- Vamos procurar ajuda.
- Não vale a pena. Ninguém nos ajudará. Somos apenas jovens que se amam. Quem se preocupa com isso? Pensa nisso minha ternura, minha essência pura. E tudo se enaltecerá.
- Confio em ti, na tua raiz celestial, matriz de amor imperial. Como um asteróide que abriu uma cratera profunda, no profundo amor do meu coração.
Isolda sentiu-se num mar confuso, não lhe corria de feição. Como mangais que oprimem, atapetam a margem da alma marítima, da natural protecção.
A jovem fortaleza do seu corpo está sempre adequada para saltar qualquer obstáculo, em maré de rosas sempre cuidada, regada, e que no esquecimento fica sem rega. Mas que depois recebe a água da vida. Reergue-se e canta a ária do Coro dos Caídos. Não esquece a representação final ao Criador do amor. A flor com e sem dor, sempre feminina, uterina, apta para a fecundação.
Isolda sentiu a sua jasminácea flor jasmim-manga muito murcha. Apesar de muito aromatizada não conseguia resplandecer. Sentia-se como as construções anárquicas, fechadas, sem espaços. Que quando há incêndio, arde tudo porque os bombeiros não têm onde circular, penetrar. Lançou talvez o último pedido de socorro.
- Por favor… leva-me para a maternidade.
Tristão não sabia como obedecer. O que fazer do e no tempo, o que pensar. Sentia o sol apagar-se. Mecanizou-se como adivinho talvez ao último desejo da amada nebulosa.
- Está bem… não deixes o jasmim da nossa primavera da vida murchar.
- Não! A tua fumbalelê nunca murchará. Está rejuvenescida… já rejuvenescia a ecologia. Sempre bem desperta… para ti aberta.
Chegou na maternidade e ficou entregue aos cuidados intensivos. Suspirava, procurava a vida que lhe faltava, do único que a amava. No exterior, Tristão aguardava impaciente. Talvez fosse apenas mais um daqueles trejeitos, sintomas que normalmente as mulheres sentem durante a gravidez. O tempo passava, e as noticias, ele sentia, eram desconfortáveis. Sentiu uma faísca no cérebro. Como se alguém lhe estivesse a enviar uma mensagem. Que estranho... era a primeira vez que sentia tal no seu pensamento. Parecia um pesadelo. Despertou sobressaltado. Não esperou, subiu as escadas empurrando, não se importando com quem lhe aparecia à frente. Sabia onde ela estava. Estacionou e perguntou:
- A Isolda…
O semblante da médica augurava que o ser de crer não se amoldava. Sentiu-se deslocar para a época glacial. A geografia física entonteceu-o, com os seus fenómenos físicos, biológicos e humanos. A médica conseguiu descartar-se:
- Faleceu!
Infelizmente é apenas com esta palavra que as pessoas de todo o mundo, que trabalham nas áreas de saúde respondem. Estão demasiado habituadas à morte. Como se comprassem qualquer produto num qualquer supermercado. Saboreiam com o maior à vontade um bom petisco, ao pé de um cadáver. Saborear a morte é a sua profissão. Perderam os sentimentos. Apenas sentem as pessoas como qualquer objecto. Enquanto funciona é prestável. Quando não nos serve, o destino é o caixote do lixo, a que chamam cemitério. Triste realidade e fim do perecer.
Tristão evadiu-se. Afastou-se da realidade. A querida da sua vida… sem ela? Será engano? Não! Viu, sentiu que ela se despediu, do muro de suporte da vida que ruiu. Não respirava. Lembrou-se que quando deixamos a dinastia da vela vivencial não respiramos. Sentiu a ténue chama que restava da alma do seu amor, já nos idos sempiternos.
Tristão!
Sonharam-me que descobriria o Caminho
Que tudo me seria revelado
Lamento! Não consegui
Deixo-te os meus últimos suspiros
Vão para ti. Vejo tudo tão escuro
Parece noite. Que luar, neste tão estranho lugar!
E contudo tão bonito. Vejo alguém muito longe
Que se apressa. Levita para mim
Tristão! Sinto muito medo! Ah!.. És tu!
Não te demores. Vêm meu ardor
Acolhe-te nos meus braços abertos
Ainda queria viver muito
Mas não me deixaram
Não deixam ninguém viver
Apenas nos resta o sono, sonho eterno
Da nossa infelicidade.
Um tremendo fogo interior percorreu-lhe o corpo. A decisão da morte tão cruel para expiar o sentimento de culpa que sentia… a vingança a uma sociedade desumana. Uma vingança ao mundo que não os soube acolher. Adquiriu a certeza que não adianta mais viver. Mas, não foi ele que cometeu o crime. Infelizmente no reino epidémico é proibido amar. Tudo é proibido. Os nobres têm autorização legal, inquisitorial. Apenas uma coisa não é proibida… a morte. No reino da casa da mãe joana permite-se tudo. Viver para roubar. Viver para morrer à fome.
Pegou num recipiente. Foi numa bomba de combustível e encheu-o com gasolina. Entrou em casa normalmente, ninguém suspeitou das suas intenções. Fechou-se no quarto bem trancado. Ensopou o colchão com gasolina, deitou-se e pegou-lhe fogo. As chamas tomaram conta do seu corpo. Um familiar sente cheiro a fumo. Tenta abrir a porta do quarto, não consegue. Gastaram-se quinze minutos para derrubar a fortificação. Levaram-no rápido para o hospital. As queimaduras eram intensas. Dificilmente escaparia. Pouco depois veio o fim do que nos resta. O convite da morte foi atendido. Contente por roubar mais um jovem, transportou-o para o seu abismo eterno. Os últimos momentos foram uma mensagem de esperança, para a sua Isolda. A quem amou, como poucos sabem fazer. Ao maior, mais puro e único amor da sua vida.
Isolda!
Estou prestes a consumir-me
Nas chamas da gasolina do petróleo
Na escuridão dos cofres públicos gelados
Onde guardam as fortunas invisíveis, insensíveis
Que nos conduzem à morte
O meu, o nosso clamor não será vão
Alguém escutará, redobrará este apelo!
Na noite mais sombria dos tempos
Voltarei, e juntos encantaremos, espalharemos
O perfume humano, da humanidade do nosso Amor
Oh!.. Querida… Voltaremos!
Para aniquilar os tiranos que extinguiram o amor
Vejo para sempre finalmente!
A tua beleza e o teu amor que me seguem
Vem! Para a nossa morada eterna!
Onde não existem noites
Apenas o nosso glorioso Amor
Se fortuna não tivemos na terra
A do céu será o nosso tesouro
O teu silêncio será como uma enciclopédia
Ó Glória! Ó Glória! Segue-nos
Acampa-nos sempre Amor Vitorioso, Virtuoso
Levo comigo o Anel dos Nibelungos
Do nosso amor do ouro em pó
Do símbolo da iniciação dos mistérios do nosso culto
Do casamento que inventaram, com a morte nos casaram
Este enlace que jamais alguém apartará
Como o Rei Leónidas e os seus trezentos espartanos

Gil Gonçalves

1 comentário:

Anónimo disse...

Fiquei feliz em ver a pintura do meu tio aqui no teo blog.

Obrigado. E ele lá em cima, está feliz também.

Abs

Roberto Tumminelli